segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Mundo cão

Hoje falarei sobre Dogville. Se você não assistiu ao filme, pare de ler e resolva o problema. O filme é ótimo e meu amigo Leonardo tem o DVD e empresta. Se você não conhece o Leozinho, acho que a produção já está disponível nas locadoras.
Longo, sem cenários, cheio de atores conhecidos que trabalharam por uma miséria, rodado em apenas uma locação e sem trilha sonora musical de espécie alguma - evidências de que o diretor estava fazendo o possível para ser considerado genial. Surpreendentemente, o filme é mesmo genial e todas as esquisitices acima realmente contribuem para o resultado final e não são apenas jogo de espelhos, como os filtros coloridos do Kieslowski (os filmes do polonês são espetaculares, mas o filtro é um capricho).
Dogville é o filme mais pessimista que já assisti e duvido que exista algum outro que o supere. Veja algumas conclusões mais alegres e “pra cima” que pude extrair do roteiro:
Poder absoluto corrompe absolutamente.
Amor é circunstância.
O homem é naturalmente mal.
A moral é relativa.
Nossa existência se resume ao sexo e suas conseqüências.
E, a minha preferida, a vingança é um prato que se come frio.
A única coisa que impede você de se matar imediatamente após assistir ao filme é, pensei, o fato de que se trata de uma história de ficção. Uma reflexão sobre a humanidade em geral, mas sobre ninguém em particular... Mas aí cai a ficha.
Todos nós estamos, em alguma medida, representados no filme. Cuidadosamente, o diretor distribui a trama entre dezessete arquétipos bastante ancorados na realidade. Acuado, vi que não tinha alternativa a não ser me matar. O filme retratava mesmo a natureza humana, sem máscaras – e somos todos uns canalhas.
Decidi que iria por fim a vida mergulhando uma torradeira ligada na banheira. Foi uma decisão inteligente que me ganhou um tempo, pois não tenho nem banheira e nem torradeira. E o tempo foi o suficiente para que refletisse um pouco mais sobre o filme – e percebesse um detalhe sutil, que fez toda a diferença.
Os seres humanos retratados no filme parecem reais, mas não são. Falta a eles uma coisa importantíssima: espiritualidade. A igreja de Dogville não tem padre, assim como os habitantes da cidade não tem religião. A eles faltam os sentimentos de arrependimento, de esperança, de compaixão e de humildade. Cá entre nós, os sentimentos mais difíceis de serem cultivados. É fácil amar, pois todos queremos ser amados e entendemos que, para isso, temos que amar um pouco em troca. Além disso, o amor é um sentimento muito próximo do desejo – e pode ser facilmente confundido. Mas perdoar verdadeiramente é muito difícil e verdadeiramente aceitar os próprios erros é quase impossível.
Quase.
A moral humana é relativa, mas existe uma moral maior que a nossa. Estuprar uma criança é errado, independentemente de qualquer contexto. Tortura física e psicológica é errado. Desviar verbas públicas para investir na campanha de reeleição é errado. Absolutamente errado.
A sociedade é uma obra humana e isso tá na cara. Qualquer um pode ver que não temos feito um trabalho muito bom – trata-se de uma estrutura falha e incoerente, que traz à tona tudo o que há de pior em todos nós.
Mas ainda existe esperança. Pode chamar de Deus, pode chamar de força superior, pode chamar de ingenuidade, mas ela existe. E a prova disso é o próprio filme, pois alguém percebeu o perigo de esquecermos de que há uma moral maior que nossas limitações. Alguém contou a história de Dogville, para que possamos refletir um pouco mais sobre nós mesmos.
Mas mandei instalar a banheira assim mesmo. Nunca se sabe o dia de amanhã...


O tom pessimista da crônica combina com o tom do filme, mas, apesar do final macabro, nunca considerei o suicídio uma alternativa viável e sinceramente acredito que o melhor da vida de todos nós ainda está por vir, junto com o pior, claro. Pois a vida, meus caros, é sempre o que está por vir, o resto é apenas memória – podemos viver com elas, mas nunca viver delas.

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