quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Valdirene e Berenice

As palavras, as palavras. Algumas têm mais de um significado, veja o exemplo da mundana “cabo”, que pode ser uma patente do exército, a parte onde seguramos da vassoura (dentre outros objetos) ou um fio. E ainda tem “levar a cabo”, que significa “levar a termo” e possivelmente outros significados. Ou seja, trata-se de uma palavra claramente explorada que deveria entrar com um processo contra alguém. É uma palavra sobrecarregada, enquanto outras, como, sei lá, “cárabo”, que é até parecida, ficam sem uso.
Há palavras, ainda, que eram para significar uma coisa e acabam significando outra. “Deputado” é um bom exemplo. Foi de “representante popular” a “ladrão de galinhas” praticamente sem escalas.
Outras, mais abusadas, assumem significados muito maiores que uma simples definição de dicionário. Será que “morte” pode ser definida simplesmente como o fim da vida? Alguns acham que a vida não acaba, falam de transcendência, de ascendência e de outros bichos. E, para não pular etapas, que tal “vida”? Defina “vida”.
Conheci um velho em um beco, certa vez, que me contou o significado exato da vida e da morte. Eu poderia revelar para você, mas aí teria que te matar.
De qualquer forma, com a recente discussão que tivemos aqui no blog sobre a definição de “arte”, resolvi consultar o velho, que me contou a seguinte história.
Há muito, muito tempo atrás, quando ainda não existia o Cid Moreira, também não existia a arte. Então, Deus percebeu que alguns homens estavam criando alguns objetos que não eram ferramentas, que não tinham finalidade prática alguma. Curioso, disfarçou-se de Grouxo Marx e caminhou entre os povos, perguntando para que serviam aqueles badulaques. As respostas eram as mais diversas: para embelezar, para surpreender, para criticar, para contestar, para homenagear, para enternecer, para faturar um trocado com os turistas, etc.
Deus percebeu que uma tendência estava surgindo. Um subproduto importante e inesperado da liberdade foi a criatividade e, com a criatividade, a arte. Só que a arte ainda não tinha nome. Deus sabia que a responsabilidade de criar as palavras era do homem, mas queria apressar o processo, pois estava curioso com aquela mais nova surpresa do processo evolutivo (naquela época, o homem ainda evoluía), então chamou um camponês e o encarregou da tarefa.
O nome do camponês era Edmundo Arte.
Deus solicitou a Arte a criação de duas palavras. Uma para definir todo o conjunto das “obras sem funcionalidade que podiam ter muitas funções, dependendo do observador e dos valores culturais acumulados pela sociedade no contexto histórico”. Essa primeira palavra seria usada por todos. Nas ruas, nos cabarés sórdidos, nas agências de publicidade. Toda tentativa de expressão poderia ser qualificada por aquela palavra, porque todo homem era criativo e todos tinham o direito de dar nome àquilo que criavam para seu deleite ou dos outros – mesmo que não fosse lá essas coisas.
A outra palavra seria mais exclusiva e estaria reservada para qualificar aquilo que fosse único, a união praticamente perfeita entre habilidade técnica e inventividade. Aquilo que seria a inspiração transubstanciada em objeto. Esta palavra seria reservada para qualificar o que ficaria exposto em museus, galerias e coleções particulares, freqüentaria apenas os ambientes mais restritos.
O próprio Edmundo, contudo, não era lá muito criativo e batizou a primeira palavra de Berenice Arte e a segunda de Valdirene Arte.
Com o tempo, as duas passaram a ser conhecidas apenas pelo sobrenome e foi instalada a confusão. Que só aumentou nos anos seguintes, já que as duas, gêmeas idênticas, tem a mania de trocar de lugar uma com a outra, e a gente nem percebe.

3 comentários:

  1. Mais do que a dúvida do que é ou não é arte, tem a dúvidqa do que é ou não inventado pelo escritor. Me diz uma coisa, essa história de Berenice e Valdirene é mentira ou verdade?

    ResponderExcluir
  2. Para o autor: sua criatividade me surpreende... AINDA!

    Para Myllene: se a historia eh verdade ou nao, pouco importa. (Eu tenho certeza que ele inventou essa). Como dizia um dos maiores artistas literarios do seculo 18, Oscar Wilde: In matters of grave importance, style, not sincerity, is the vital thing. (The Importance of Being Earnest, act IV).

    ResponderExcluir
  3. OOOOpps!!! Do seculo 18, nao, do seculo 19! Sorry.

    ResponderExcluir