sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Quatro Homens e uma Jangada

Salvo engano, meu pai já tinha me contado essa história e, fã que era do Orson Welles, é possível que conhecesse toda ela em detalhes. Vocês terão que se contentar comigo para lembrar essa passagem do gênio do cinema pelo Brasil.

Logo após o sucesso de Cidadão Kane (primeiro filme de Welles e uma das obras-primas do cinema), a produtora RKO contratou Welles e outros diretores de renome para fazer um documentário no Brasil, em várias partes, cujo principal objetivo era filmar o carnaval.

Mandaram o diretor errado, como bem lembrou Cacá Diegues. Queriam uma visão alegre, descompromissada e com muita bunda do samba. Welles encantou-se com o povo pobre e feio das favelas e das praias do Nordeste e ficou impressionado com o sistema oligárquico que imperava (imperava?) no Brasil, no qual o pobre, por mais que trabalhasse, permanecia pobre. Numa produção cercada de imprevistos e complicações, Welles decidiu, por conta própria (mas com o dinheiro da produtora), filmar um documentário sobre quatro jangadeiros que iriam, de jangada, de Fortaleza até o Rio de Janeiro, em uma espécie de odisséia neo-vanguardista (um dos meus pleonasmos preferidos).

Mais confusão, falta de verba, contratempos de produção e o vice-presidente da RKO veio ao Brasil pedir para o diretor desistir e filmar, finalmente, o diabo do carnaval.

— Mas eu já filmei! – Respondeu Welles, hipoteticamente.
— Mas são um bando de negros pulando, sem áudio. Onde estão as mulatas? Cadê a Carmem Miranda?
— Mas o Carnaval não é apenas mulatas e a Carmem Miranda. É a catarse de um povo...
— Chega! Nós queremos as mulatas e a Carmem Miranda! E, de qualquer maneira, você não pode contar a história desses jangadeiros.
— Agora é tarde.
— Como assim?
— Já filmei quase tudo. E o líder dos jangadeiros morreu no momento em que chegava à Baía da Guanabara. Devo a ele a conclusão do filme. E pegaria mal para a produtora cancelar um filme no qual um dos protagonistas deu a vida para sua realização.
Os produtores deram mais dez mil dólares para Welles concluir as filmagens e levaram de volta todo o equipamento, salvo uma câmera e um ou outro apetrecho. O diretor de fotografia ficou e terminou o trabalho de graça, pois era Húngaro e, com a segunda guerra mundial pegando fogo, não podia mesmo voltar para casa. Welles recrutou moradores locais, inventou uma história de amor para “dar liga” ao documentário, editou tudo apenas com o áudio das ondas do mar e da madeira das jangadas e o resultado, só recentemente desencavado por um produtor de bom senso, é magnífico.
Sem equipamentos adequados, como uma lente grande angular, por exemplo, Welles cavava buracos na areia e enfiava o Húngaro lá dentro, para garantir a angulação necessária da imagem. E não tenho nem idéia de como ele fez os efeitos de luz. A verdade é que o filme, feito no início da década de quarenta, com orçamento miserável e repleto de situações adversas tem cenas que deixam no chinelo as superproduções de hoje. E não estou falando simplesmente da poesia das imagens – a qualidade técnica do resultado final é inacreditável.
Tive a oportunidade de ver, ontem à noite, Quatro Homens e uma Jangada, um subproduto (está mais para superproduto) da vinda de Welles no Brasil. A história desse filme é muito mais rica e interessante do que o espaço limitado do blog permite contar, mas fica aqui o registro da minha admiração – pelo Welles e pelo Brasil, terra de histórias e personagens marcantes.

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