quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Três pequenas coisas – parte 4

A notícia que li no jornal dizia que o sábio que havia me dito tantas coisas interessantes e profundas havia sido preso. A acusação era de charlatanismo ou algo assim. Por algum tempo, fiquei sem saber o que isso significava.

Ele não havia me cobrado dinheiro nenhum pelas conversas que tivemos, mas o jornal não iria se enganar. Ou iria? A polícia poderia estar equivocada? Será que tudo não passava de um mal-entendido? Não havia como saber. Mesmo que eu fosse conversar com o sábio (ou suposto sábio) eu ouviria apenas a versão dele – e a versão dele poderia não ser a verdade.

Mas minha cabeça fervia. Será que ele havia deixado de ser sábio por causa disso? Será que suas palavras perderam o valor? Se eu o admirava tanto antes, agora que ele havia sido preso, o que fazer com minha admiração? Ele, sem dúvida, era convincente, mas será que era um enganador?

Senti-me traído e percebi que meus sentimentos por ele mudaram de admiração para pena. Fosse ele um incompreendido ou um canalha, ele agora havia perdido o status de homem honrado e com credibilidade.

Lembrei que nossa conversa sobre o perdão havia ficado no ar e que eu esperava ansiosamente por uma continuidade. Agora, preferia não ser visto ao lado dele. Ouvi também as pessoas falando mal do deposto sábio e, embora não me juntasse ao coro, também não o defendia, pois não tinha como saber exatamente o que havia acontecido. Além disso, parecia tudo correto com o processo de prisão. De acordo com o jornal, houve testemunhas e tudo o mais.

Mas... E se todos estivessem errados? Afinal, o que caracteriza o sábio é sua capacidade de ver e fazer coisas que ninguém mais consegue ver ou fazer. O ponto de vista do sábio só é claro para ele próprio. Afinal, Jesus Cristo havia sido perseguido e condenado.

Percebi que eu estava fazendo um juízo de valor do destituído sábio não por tudo o que ele havia feito, mas pelo seu pior momento. Já imaginou ser sempre avaliado pela pior coisa que já aconteceu com você?

Decidi que era um erro não conversar com ele – e um erro maior ainda conversar achando que o que eu ouviria seria apenas um desabafo ou só a opinião do sábio. Para conhecer a verdade, eu precisaria ouvi-lo de coração aberto, sem opinião formada. Isso era quase impossível para mim, mas resolvi tentar.

Mandei uma carta, longa e cheia de rodeios, na qual fiz diversas perguntas. Relato aqui apenas as perguntas e as respostas, em nome da concisão:

"O que dizem de você é verdade?"

"Sim. Mas essa não é a pergunta correta. Você deveria estar se perguntando se o que dizem de mim é justo. A verdade não tem mestre e serve a diversos propósitos. Mas a justiça é apenas uma. A mentira nada mais é que a verdade flexibilizada, ou reinterpretada. Já a justiça é dura e inflexível – por isso é tantas vezes quebrada. A verdade, como o coqueiro, se dobra com o vento."

"E o que é, enfim, o perdão?"

"Perdoar é aceitar a verdade do outro".


 

Um Feliz Ano-novo para todos os leitores do Ninguém Perguntou. Que no ano que vem as coisas justas e corretas aconteçam com freqüência e em abundância.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Três pequenas coisas, parte 3

O terceiro homem extraordinário que encontrei era um sábio que vivia recluso e,diziam, sabia explicar o que era a honra, o que era o amor e o que era o perdão. "Grande coisa!", pensei, "Todo mundo sabe o que são essas coisas. Nem todo mundo as pratica, mas todo mundo sabe". Mas minha curiosidade era maior que minha arrogância e decidi visitá-lo mesmo assim.

Ele não parecia um sábio, pois não era nem velho e nem usava óculos. Tinha trinta e poucos anos, estava em boa forma física e sua expressão era uma estranha mistura de disposição e tristeza, mas ele me recebeu com um sorriso absolutamente honesto e, depois de me servir chá, passeou comigo pelo parque, onde conversamos por horas, que pareceram apenas breves minutos.

— O espelho é um objeto largamente desnecessário – disse ele em um determinado momento – pois, na maior parte do tempo, as pessoas enxergam apenas elas mesmas. E é por isso que é tão difícil amar, perdoar e ser honrado, pois o segredo dessas três pequenas coisas está na nossa capacidade de enxergar o outro, coisa que raramente somos capazes de fazer.

— Você então considera a honra, o amor e o perdão pequenas coisas?

— Sim, claro! Muito pequenas e frágeis. Tão pequenas que você pode carregá-las com você e nem perceber e tão frágeis que você pode quebrá-las apenas com um olhar.

— Mas dar a vida por alguém pode ser um ato de amor ou de honra – e isso é algo grandioso.

— Dar a vida por alguém também pode ser uma grande bobagem – disse ele, sorrindo e, obviamente, me provocando.

— Um pai que dá a vida por um filho só faz isso por amor...

— Sem dúvida, mas escolher esse exemplo para definir o amor é uma indução ao erro. Amar não é se sacrificar pelo outro, não é sofrer pelo outro – amar é querer fazer o outro feliz. Isso pode trazer sofrimento e sacrifício, mas é uma sutil diferença. No amor, o importante não é o seu sacrifício, o seu esforço, o seu sentimento – mas apenas a felicidade do outro. Se você pensar no amor em termos de sacrifício, é provável que, um dia, você vá exigir algo em troca pelo seu amor.

— Mas o amor é uma troca! Amor sem reciprocidade vira sofrimento.

— Sim, vira, mas ainda assim é amor. Amar é uma decisão importante, você precisa saber no que está se metendo!

Não consegui segurar o riso e resolvi continuar a conversa de forma direta:

— Certo, certo! E o que é honra?

— Se você, sem querer, pisa no pé de alguém, o que você faz?

— Peço desculpas!

— E?

— E? Ué, mais nada! Peço desculpas e pronto. O que você faria?

— Depende. Era uma pessoa mais velha? Mais nova? Era um amigo? Um desconhecido? Eu sujei o sapato do outro? Eu estraguei? Eu machuquei a pessoa? A pessoa ficou com raiva ou pareceu não se importar? A honra exige que você reconheça a circunstância. A honra não é sobre o que é certo ou o que é errado, é sobre o que é justo. Se eu, por exemplo, estraguei um sapato, é justo que eu compre outro. Se eu não tenho dinheiro, é justo que eu dê o meu sapato. Se eu não tenho sapato, é justo que eu me ponha a serviço daquela pessoa, perguntando a ela o que eu poderia fazer para compensar meu equívoco. A honra não é o que você diz, é o que você faz. Não existem palavras honrosas – apenas atitudes.

— Mas tudo isso por causa de um pisão no pé?

— O erro de achar que honra é uma coisa grande, reservada apenas para situações grandiosas, é que deixamos de utilizá-la nos contratempos corriqueiros. Quando a situação grandiosa aparece nos falta a prática – e não sabemos como nos comportar honradamente. A honra é uma coisinha pequena, mas, se alimentada, pode se tornar verdadeiramente enorme. Mas é necessário ter bom-senso. Como disse antes: é preciso reconhecer a circunstância – não é pra comprar um sapato novo toda vez que você pisa no pé de alguém!

Mais uma vez, sorri e, também mais uma vez, mudei de assunto bruscamente:

— E o perdão, o que é?

— É o que você terá que fazer agora, pois tenho outro compromisso urgente e, infelizmente, não posso mais continuar a nossa conversa. Peço, dessa forma, perdão pelo inconveniente.

E, dizendo isso, apenas acenou com a cabeça e foi embora. Fiquei um pouco irritado, mas procurei não me incomodar com o fato. Dois dias depois, li uma notícia no jornal que me deixou estupefato, mas essa é uma história para ser contada em outro dia, pois agora já é tarde e vou me recolher. A exemplo do "sábio", peço o perdão de vocês por interromper o meu relato.


 

Por enquanto, Feliz Natal.


 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Três pequenas coisas, parte dois

O segundo homem extraordinário que encontrei foi num lugar bem longe daqui, em uma cidade no meio do deserto. Ele estava tentando atravessar o deserto a pé. Havia, milagrosamente, chegado até ao meio do caminho, mas estava doente e com os pés machucados e não tinha condições de prosseguir a viajem...

... Mas ele estava disposto a prosseguir da mesma forma.

Sentei-me ao lado dele, apresentei-me e após trocarmos palavras cordiais, mas de forma breve e objetiva, travamos o seguinte diálogo:

— Homem, por que insistes em prosseguir nessa loucura? Por que queres atravessar o deserto?

— Para chegar ao outro lado – ele me respondeu sorrindo, em clara referência à piada da galinha que teima em atravessar a rua.

— Gostaria de te lembrar que a galinha não é animal dos mais inteligentes.

— Mas veja você que minha busca não é pela inteligência, é pela felicidade.

— Mas não podes ser feliz aqui?

— Mas como posso ser feliz aqui, se aqui não tenho mais nada? Nem casa, nem amigos, nem trabalho, nem família?

— Mas, quando chegares lá, continuarás não tendo nada disso.

— Quando eu chegar, eu terei a satisfação de ter conquistado algo que muitos consideram impossível.

Ponderei o que ele disse e percebi que não o demoveria de sua peregrinação, mas resolvi insistir um pouco mais, utilizando-me de uma palavra mencionada por ele próprio:

— Então, sabes que a tua empreitada é impossível de ser realizada.

— Sim, é claro que é impossível. Só deixará de ser impossível depois de ser realizada.

Dizendo isso, ele se levantou com dificuldade e, mancando um pouco, dirigiu-se para o nada, levando consigo uns nacos de comida, um coldre de água e um assobio.

Mais tarde, à salvo do calor inclemente dentro de meu quarto de hotel com ar-condicionado, peguei-me rememorando minhas conquistas. Meus títulos, meus amigos, minhas amantes, meu dinheiro, meus filhos. Nada do que fiz para conseguir o que consegui é comparável ao esforço que esse homem está fazendo para, possivelmente, fracassar. Porém, se ele conseguisse, imaginei que ele teria uma sensação de realização que eu jamais poderei sentir ou experimentar e fiquei com um pouco de inveja.

Vi que gostaria de ser um pouco mais como aquele homem, mas éramos muito diferentes e, em um triste momento de lucidez, percebi que o que nos tornava diferentes não era o que havíamos conquistado em nossas vidas, mas, sim, o que havíamos perdido.

Aquele homem havia me ensinado a verdadeira dimensão do que é perseverança e determinação.

Prosseguir nosso caminho apesar das dificuldades é importante, mas prosseguir quando o caminho parece impossível é mais que importante, é fundamental.

Meu terceiro encontro foi, talvez, o mais marcante de todos, mas outros afazeres me chamam no momento. Retornarei em breve.


 

Três pequenas coisas, primeira parte

Desculpem-me pelo longo intervalo em meus escritos, mas eu estava viajando. Em minhas viagens, passei por muitos lugares e encontrei três homens extraordinários.

O primeiro deles morava em uma casa na qual toda a parte leste era feita de vidro. Ao se aproximar da residência por essa direção, inevitavelmente qualquer pessoa veria o movimento interno da casa e uma sensação de estranheza em relação àquela bizarra arquitetura seria bem provável. Por que alguém viveria assim, sob o escrutínio de seus vizinhos, criaturas que podem, como todos sabem, ser bem terríveis?

Se era a luz natural que ele buscava, por que não colocar ao menos uma pequena cerca para impedir os olhares curiosos? Por que não usar o vidro no teto para preservar sua privacidade e, mais ainda, sua segurança?

Bati à porta deste homem extraordinário, levado pela também extraordinária força da curiosidade e dele obtive, após uma conversa, franca, aprazível e pontuada por amenidades, a seguinte confissão: sua mãe o havia deixado quando ele ainda era muito novo. As circunstâncias sob as quais a moça havia partido foram tristes, mas não essenciais ao entendimento do meu relato. Então, por discrição, em consideração à enorme falta de discrição a qual esse homem submeteu sua própria vida, não vou entrar neste pormenor.

O fato é que a mãe do sujeito o havia deixado há cerca de 20 anos e, certo dia, ele teve um sonho. Sonhou que sua mãe estaria voltando, e que chegaria pelo Leste.

— Assim, poderei vê-la ao longe. Não corro o risco de ela chegar ao pé da porta e recuar, arrependida. Quando ela vier, eu saberei.

— Mas como pode saber se ela realmente virá? – Perguntei, incrédulo. Pois ainda se estivéssemos falando de um bilhete deixado pela moça – mas um sonho?

— Eu não sei. Eu acredito que ela virá. São duas coisas muito diferentes.

— Diferentes como?

— Saber não é a mesma coisa que estar certo. Nosso conhecimento é limitado pela nossa capacidade de interpretação. Eu poderia saber que a minha mãe viria e, no entanto, caso não acreditasse nisso, esse conhecimento de nada me serviria, pois ele não me traria nem conforto, nem esperança.

E, depois de um breve silêncio, com os olhos fixos no leste, ele concluiu:

— Mas sempre é possível acreditar.

Saí de lá pensando nas coisas que eu sabia e nas coisas nas quais eu acreditava e me peguei pesando quais teriam maior impacto em minha vida e em minhas decisões como pessoa. Foi uma reflexão surpreendente e percebi que aquele homem havia me ensinado o que era fé.

Agora é tarde e outras atividades estão cobrando o seu quinhão de tempo. Em breve relatarei os meus outros encontros aqui, nesse mesmo diário de viagens.