sexta-feira, 23 de março de 2007

Metáfora

A felicidade é como uma pérola no ventre de uma hidra de sete cabeças que deve ser alcançada destroçando cada uma dessas cabeças e cauterizando as feridas com o fogo da angústia, para evitar que as cabeças cresçam novamente. Só depois de eviscerar a hidra, é que, untados pelo sangue da besta, podemos ter a verdadeira paz de espírito, ainda que emporcalhada de bile e impregnada do odor pútrido da batalha. Hipoteticamente, claro.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Eu e a humanidade – uma humilde reflexão de aniversário

Hoje faço trinta e quatro anos. Passei um ano a mais que Jesus Cristo na Terra, mas meu currículo não é tão impressionante quanto o dele. Nenhum milagre, nenhum seguidor e é quase certo que a história não será dividida em antes e depois de mim. O lado bom disso é que também não fui crucificado.

De qualquer maneira, comparar minha vida (ou a de qualquer outro) com a de Cristo não é muito justo. Mesmo assim, ainda estou muito longe de ser lembrado pela humanidade pelos meus feitos – apesar de ter feito uma ou outra coisa bem razoáveis. Quem de vocês já comeu dez pedaços de pizza em dez minutos? Quem? Quem?

Contudo, por mais impressionante que isso seja, esse não é o tipo de coisa que atrai a humanidade. A humanidade gosta de pessoas que movem multidões com suas músicas, que derrubam governos, que pintam com sensibilidade e originalidade, que conseguem acertar a trave com uma bola de futebol quatro vezes seguidas (mesmo que seja truque) ou que escrevem de forma comovente e reveladora.

Mas a humanidade também gosta do Paulo Coelho e da Paris Hilton, por isso ainda não descartei por completo minhas chances de impressioná-la de alguma forma.

O problema é que o tempo está passando e algumas coisas já estão fora de questão. Tive meus cinco minutos de fama com a música na minha fase pós-adolescente, mas quinhentas pessoas na platéia estão longe de ser uma multidão. Como executivo, cheguei a sair na Caras (nas fotos pequenas) e na televisão (DFTV), mas essa fase agora parece outra vida. Conheci supermodelos, mas nunca fui filmado na praia com uma delas. O esporte nunca foi realmente uma opção (apesar de ter marcado um gol na seleção brasileira infanto-juvenil de futebol cinco). Nas artes plásticas, o máximo que consegui foi um puxão de orelha de quem realmente sabe o que está fazendo. E no teatro, bem, basta dizer que o desaparecimento da fita gravada com minha última apresentação foi melhor para todo mundo – para mim e para a humanidade.

Minha melhor chance ainda é publicar um livro. É uma das únicas coisas para a qual ainda não estou velho demais. Pelo contrário – estou até novo. Mas que seria bom ter algo publicado mais rapidamente, seria.

Mas tem algo que a humanidade ainda não sabe que conquistei. Algo que, quase inadvertidamente, consegui fazer muito bem feito. Algo que, sem sombra de dúvida, vai deixá-la se roendo de inveja.

Hoje à tarde, apesar de todos os meus problemas, fracassos, crises de meia idade e resultados de exames médicos, ao refletir sobre a minha vida, não consegui conter um sorriso. Um enorme, praticamente pornográfico, sorriso de satisfação.

RÁ! Toma essa, humanidade!

terça-feira, 20 de março de 2007

O jeitinho brasileiro tem jeito?

Não são todos, claro, mas de uma forma geral o brasileiro é muito pouco civilizado.

Entendo que a miséria pode levar o ser humano a fazer coisas inomináveis e sei que a falta de perspectiva pode acabar com qualquer moral, mas isso não é desculpa para o famoso "jeitinho" e o comportamento malandro da classe média brasileira, que não está passando fome e nem necessidade.

O governo Lula carimbou a falcatrua, dos benefícios concedidos ao filho do presidente por empresas públicas, passando pela quadrilha organizada que era (era?) a diretoria do PT até o espanto do presidente de que a crise dos Correios tenha sido deflagrada pro "apenas" cinco mil reais. Como é que alguém pode ficar indignado quando se rouba só isso, não é mesmo? Ainda se fossem alguns milhõezinhos...

Lula é mesmo o retrato do brasileiro. Esforçado, chega onde ninguém acredita que seria possível, mesmo que para isso lhe falte cultura e sobre malandragem. Não foi o presidente que viu o filme pirata de Dois Filhos de Francisco? E ainda teve coragem de elogiar a fita em cadeia nacional?

O povo aceita tudo isso porque faz a mesma coisa. Vê filme pirata, mente na entrevista de emprego, rouba material de escritório do trabalho, estaciona na vaga de deficientes, falsifica carteira de estudante e acha tudo isso normal.

Até entenderia se isso acontecesse uma vez ou outra, mas o fato é que, como diz o Lobão, ainda não inventaram dinheiro que o brasileiro não pudesse ganhar. E esse comportamento está refletido nos nossos governantes. A triste verdade é que o povo não tem muita moral para exigir, bem... moralidade.

Imagino que o cerne dessa falta de civilidade seja uma espécie de vingança contra os impostos abusivos e o massacre que nossas finanças e esperanças sofrem mês a mês, mas, infelizmente, nessa guerrilha contra o caráter, as maiores vítimas acabam sendo nós mesmos, pois é muito difícil estabelecer os limites do "jeitinho".

Ontem, no supermercado cheio, uma senhora entrou na maior cara de pau no caixa para até dez volumes com um carrinho transbordando de compras. Informei-a de que estava na fila errada e ela fingiu que não escutou. Insisti e ela me disse, com o nariz em pé, que já estava na fila e que ninguém iria tirar ela dali. O gerente do supermercado interveio e pediu para que ela fosse para outra fila. Ela foi, tendo que ouvir os aplausos das pessoas que estavam na fila certa. Quando eu estava saindo do mercado, a mulher veio correndo por trás e me deu um soco nas costas.

Não me machuquei, mas fiquei impressionado com o fato. Coisa parecida acontece no trânsito todos os dias. Um cara é fechado, xinga o infrator e acaba levando um tiro, porque o errado não admite que lhe apontem o erro.

Como disse, não é todo mundo. Talvez nem seja a maioria, mas sei que é gente suficiente para afetar o nosso dia-a-dia e o nosso país, basta olhar para quem elegemos para nos representar.


segunda-feira, 19 de março de 2007

De mal a melhor 3

Vocês deveriam ler os comentários que fizeram sobre a minha crônica "De mal a melhor 2". Primeiro, porque são bons e, segundo, porque complementam bem a idéia da crônica e, terceiro, se vocês não lerem nem a crônica e nem os comentários não vão entender direito o que vou escrever aqui.

É claro que, quando afirmo que o mundo está melhorando, esta não é uma frase completamente isenta de ironia, pelos motivos que o Fred apresentou muito bem – e muitos outros. Por outro lado, acho mesmo que estou melhor hoje do que estaria há, digamos, sessenta anos atrás. Para dar um exemplo egoísta e imediato, os remédios que tomo hoje para a diabetes não haviam sido sequer inventados na época. Hoje, esse remédio é distribuído de graça pelo governo. Há sessenta anos eu não teria chegado aos trinta.

Estamos melhor hoje, então. Mas por que parece que não estamos?

A verdade é que bom e ruim são conceitos relativos e, com a peste negra assolando a cidade ou não, se alguém diz que as coisas não vão bem, as coisas não vão bem e pronto. Fatos não servem para medir a felicidade e é por isso que tanto ricos quanto pobres estão sujeitos à tristeza e à depressão. O ser humano se adapta muito facilmente a qualquer situação, seja ela boa ou ruim.

Além disso, a adversidade não nos dá tempo para pensar e, freqüentemente, faz vir à tona o que temos de melhor. Se os Vikings vão invadir a aldeia, toda a aldeia irá se unir. O egoísmo não tem espaço em uma situação de catástrofe. O individualismo não tem espaço dentro da senzala. O isolamento não consola os sobreviventes da enchente. A situação antigamente era preta, mas os esforços da humanidade para se consolar e buscar a realização eram maiores. As famílias comiam juntas à mesa, os namoros eram longos e repletos de poesia, os aldeões se reuniam em torno da fogueira para contar histórias.

Nos tempos modernos, onde a tribo não tem mais que sair em bando para caçar, o individualismo nos traz um tipo de problema completamente novo: a catástrofe individual. A depressão, a angústia e a dominação econômica e cultural. Em uma sociedade onde temos muito (até o mendigo de hoje tem mais que o mendigo da idade média), ainda ficamos com a sensação de que temos pouco – e não sabemos exatamente o que queremos. A solução é ter dinheiro, pois ele compra qualquer coisa.

A cultura praticamente inexiste porque, embora a produção cultural seja o produto de indivíduos, antes, esses indivíduos estavam imersos em uma sociedade mais coletiva. A angústia dos artistas era a angústia da humanidade.

Quem escreve no blog, trancado dentro de casa, sem botar o nariz para fora, inventando seu próprio vocabulário, está produzindo um texto com uma visão muito estreita. Bandas de música que não se reúnem para ensaiar (cada um grava sua parte em casa e alguém mixa tudo no computador) estão livres até da autocrítica.

Enfim, é por isso que disse, no primeiro texto, que o mundo estava possivelmente melhor. Talvez não esteja. Talvez esteja apenas com problemas diferentes com o agravante de estar, a cada dia que passa, mais próximo do fim – sem a perspectiva de uma melhora realmente significativa adiante.

E talvez a beleza esteja realmente nos olhos de quem vê.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Diálogos íntimos 2

— Você está gordo!

Não era uma observação e nem uma constatação; era uma acusação. Palito (apelido que carregava desde a infância, que, de uns tempos para cá, passou a ter uma carga irônica), não deixou por menos:

— Sua vaca escrota!

Mônica nem pensou duas vezes; antes que Palito terminasse a última frase já emendou, partindo para cima do marido com firmeza e determinação:

— Porco imundo. Vê se mexe essa barriga e faz alguma coisa que preste.

— Não me provoca que te quebro no meio – esbravejou o Palito, sacudindo a esposa pelos ombros e jogando ela sobre o sofá.

Atracaram-se, gritando, se arranhando e trocando ofensas do mais baixo calibre no mais alto volume. E, em meio a tudo isso, sem parar com a gritaria, amaram-se furiosamente, várias e várias vezes até o Sol nascer. O amor é mesmo um sentimento sem nenhum pudor.

De mal a melhor 2

Apesar de só o Majarti ter postado um comentário, recebi alguns e-mails que confirmam essa minha impressão de que o mundo parece que está tomando jeito. Mas tem um problema: a velocidade.

No ritmo que estamos indo, quando conseguirmos transformar isso aqui em um lugar decente, o Sol já vai estar prestes a se pagar, a Amazônia já terá virado salada de gringo, as calotas polares já terão derretido e o Botafogo terá sido campeão brasileiro.

Precisamos ser mais rápidos, agilizar a moralização da política (internacional, inclusive) e a desmoralização dos preconceitos. Temos que arregaçar as mangas e transformar o mundo em um lugar melhor imediatamente.

Já estou fazendo minha parte: mandei um e-mail para a Globo pedindo o cancelamento imediato do Big Brother e do Domingão do Faustão.

Só não parem de ler o Ninguém Perguntou, tá? Sei que isso aqui não é lá muito inteligente, mas vocês não vão me trair, não é?

Não é?

terça-feira, 13 de março de 2007

Filmão

Alguns filmes são bons, outros são obras-primas, mas poucos filmes conseguem ser filmão.

Pra ser filmão, o filme nem precisa ser muito bom tecnicamente, mas existem alguns pré-requisitos absolutamente necessários:

1. Você tem que dizer, em voz alta, "puta que pariu" (ou expressão equivalente), com um sorriso no rosto, pelo menos uma vez durante a exibição.

2. A história não pode ser baseada em fatos reais. Inclusive, quanto menos reais os fatos, melhor.

3. Pelo menos um dos atores tem que ser muito ruim. Ainda em relação aos atores, é preferível que pelo menos um dos personagens principais tenha bigode.

4. Tem que ter ao menos uma cena de sexo ou, no mínimo, uma cena de mulher com os peitos pra fora.

5. O filme não pode se levar muito a sério.

E, o mais importante de tudo, quando você falar bem do filme em uma roda de amigos, a maioria das pessoas tem que balançar a cabeça negativamente. Filmão não é para qualquer um.

Exemplos de filmão: Massacre no Bairro Japonês, Desejo de Matar (com Charles Bronson), a maioria dos filmes de Kung Fu, Tubarão (a partir do segundo), Crocodilo, Piranha, Anaconda, enfim, qualquer bicho aquático que tenha ficado gigante ou inteligente, Ruas de Fogo, Uma Noite Alucinante e, claro, qualquer filme de zumbi.

O último exemplo da safra é o Cobras a Bordo (Snakes on a Plane), com o Samuel L. Jackson fazendo o papel de um agente do FBI preso em um avião com uma testemunha de um crime, várias loiras peitudas, uma socialite (com o cachorro), um astro do rap, um executivo inglês, uma mãe solteira (com o bebê), um viciado em videogames, uma porção de gente que morre e quatrocentas cobras de todos os tipos.

Assisti ontem. O que eu achei? FILMÃO!!


 

De mal a melhor

Ocorreu-me uma coisa: apesar das aparências, é possível que o mundo esteja, na verdade, melhorando.

Veja bem, não sou historiador, e talvez esteja enganado, mas me parece que, nos tempos antigos, a quantidade de gente oprimida era maior – e a opressão também era mais pesada. Roma, a Europa medieval, o Brasil-colônia, a índia ocupada pelos ingleses, o Japão feudal... Prefiro muito mais o meu Brasilzinho aqui, em 2007, mesmo considerando o Zé Dirceu e o Rio de Janeiro.

Alguém podia avisar lá na África pra moçada segurar as pontas. Tá melhorando, gente, tá melhorando.

Ou será que não?

Diálogos Íntimos

— Tá lendo o quê, hein? – Perguntou a Samira tentando espiar por cima dos ombros do Manfredo, que era fã de quadrinhos, mas que há tempos não conseguia um minuto para curtir seu hobby sem interrupções. Se não era o trabalho, era a Samira, que tinha nos seus hábitos de leitura a Caras e as receitas do site do Mais Você.

— Hn... – Resmungou o Manfredo, tentando desconversar. Mas a Samira estava sem nada para fazer e não iria desistir fácil assim.

— Eu perguntei o que você está lendo...

— É um gibi do Zorro.

— Ah, o Cavaleiro Solteirão.

— É Solitário, Samira, Cavaleiro Solitário!

— É a mesma coisa. No fundo, todo solteirão é solitário. Você não acha?

— Acho que a solidão é uma benção.

— O que você quer dizer com isso?

— Nada, Samira, nada. De qualquer maneira, a história não é desse Zorro. É do outro.

— Outro? Ah, sei, o índio. O Bobo.

— É Tonto, Samira, o nome do índio é Tonto.

— Tonto é o cara que se chama Cavaleiro Solitário e anda sempre acompanhado de um índio. Se é solitário não é para ter amigos, né?

— De qualquer maneira, não tem índio nessa história. Esse é um gibi do outro Zorro. O de capa e espada.

— Tem dois Zorros?

— Tem.

— Que coisa... Dois... Não tem nada de solitário mesmo...

Manfredo tentou não avnaçar a conversa, para ver se conseguia avançar na leitura. Mas a Samira já estava respirando sobre o seu pescoço e prestando atenção nos desenhos.

— Olha aqui! Olha aqui! – Gritou a Samira, fazendo o Manfredo dar um soluço de susto.

— Olha o quê, Samira?

— Você disse que não tinha índio! E esse aqui de bigode é o quê, hein?

— É um bandoleiro, Samira, um mexicano. Índio não tem bigode, meu Deus do céu. E nem usa sombreiro! Ô Samira, deixa eu ler meu gibi sossegado...

— Depois você diz que eu não me interesso pelas suas coisas...

— Mas eu quero que você se interesse, meu amor. Olha só, eu termino de ler e te empresto – aí você pode ler a revista depois, que tal?

— Sozinha?

— É, Samira, sozinha, sem interrupções. Que tal?

— Finalmente entendi o Zorro.

— Como assim, Samira?

— Entendi como é possível ser solitário mesmo estando acompanhado de outra pessoa.

O Manfredo repetiu para si mesmo várias vezes que aquilo era mais uma bobagem da Samira, mas a verdade é que não conseguiu dormir direito naquela noite.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Cacilda e Marilda

Rafaela e Fernanda são duas irmãs que, quando crianças, inventaram uma brincadeira chamada Cacilda e Marilda.

Aparentemente simples, a brincadeira tinha um pano de fundo impressionantemente bem elaborado e uma complexidade psicológica insuspeita. Consistia do seguinte: Cacilda e Marilda eram duas irmãs que, por circunstâncias do destino, não se viam há muito tempo. Ainda por influência do destino, Cacilda e Marilda encontram-se, por acaso, em uma rodoviária lotada. Em um canto da sala, Rafaela abria os braços e gritava, fingindo estar emocionada por rever a irmã:

— Cacilda!

No outro lado, Fernanda também gritava, com a voz falsamente embargada:

— Marilda!

As duas corriam uma em direção a outra, braços abertos e sorriso estampado no rosto. O reencontro das irmãs Cacilda e Marilda terminava com um longo e forte abraço, que normalmente desequilibrava as crianças e elas acabavam no chão, rindo muito.

Era isso. As irmãs brincavam de ser irmãs. Brincavam de destino, de saudade e de amar.

O tempo passou e o interesse pela brincadeira foi diminuindo. Certo dia, em tom de confidência, Fernanda revelou que não gostava muito de ser Cacilda e que, de vez em quando, desejava ser Marilda. Rafaela, surpresa, revelou que também não estava totalmente satisfeita em ser Marilda e que gostava mais do nome Cacilda.

— Vamos trocar? – Propôs Fernanda.

Rafaela refletiu por um momento e decidiu que, gostando ou não, não conseguiria mais deixar de ser Marilda.

— Acho que não...

— Marilda!

— Cacilda!

E as duas, já pré-adolescentes, abraçaram-se e rolaram pelo chão uma última vez.

O tempo continuou passando, como sempre faz, e Fernanda se mudou para outra cidade, onde cresceu profissionalmente e apaixonou-se. Marcou o casamento e convidou a irmã, Rafaela, para ser madrinha. As duas não se viam há cinco anos.

Foi no aeroporto, quando seus olhos se cruzaram mais uma vez depois de tanto tempo afastados, que Rafaela gritou, emocionada por rever a irmã:

— Cacilda!

— Marilda! – Respondeu Fernanda, com a voz verdadeiramente embargada.

E as duas se abraçaram. Um abraço carregado de lágrimas, de saudade e de infância.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Descontos

Capitalismo é o modelo econômico que é bom para uns e ruim para outros. Já o comunismo é quando é ruim para todo mundo, indiscriminadamente.

Brincadeiras à parte, acredito que a popularidade do capitalismo se deve ao fato de que a natureza humana não é flor que se cheire: temos um certo prazer doentio em levar vantagem sobre os outros. E é essa nossa pequena mania que acabará nos levando para os campos da degradação moral e para os vales da miséria ética. E, pelos meus cálculos, chegaremos lá depois de amanhã.

Enquanto isso, vamos às evidências. Por exemplo, o desconto. O que é o desconto? Um cabo de guerra psicológico entre vendedor e consumidor, repetido milhares de vezes por milhares de pessoas no mundo todo cujo único objetivo é a obtenção de uma vantagem.

Fosse o vendedor honesto e consciencioso, venderia seus produtos pelo menor preço possível, garantindo um lucro salutar sem prejudicar o cliente. Fosse o cliente menos pirangueiro, saberia aceitar um preço justo sem espernear. É uma visão pessimista do ser humano, mas são duas da tarde e ainda não almocei - dê um desconto, vai.

Enquanto escrevo, me vem à cabeça à famosa lei de Gérson, que ousou afirmar, em um comercial de TV que o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. Às vezes me pergunto se ele não tinha razão – o que explicaria toda a indignação que o comercial causou na época. Afinal, não existe ofensa maior que a verdade.

O texto do Alex, para referência. A crônica está abaixo.

Um Mundo que Parou no Tempo
Alex GutembergTexto publicado no jornal O Estado do Paraná, em 11 de 02 de 2007
O Nordeste brasileiro é um mundo à parte. O que os portugueses fizeram como povo da região, durante 4 séculos, foi criminoso. Usaram as índias. Oumelhor, estupraram as índias aos milhões e depois as pobres negrasescravas. Obviamente não assumiram as proles, pelo contrário, deixaram as coitadasgrávidas, os maridos traídos na marra e ainda acabaram com as virgensindígenas, que não tinham a menor idéia do que estava se passando. O custosocial disso tudo foi gigantesco. Todo brasileiro sofre até hoje. Essa violência criminosa destruiu várias sociedades de tribos nordestinas,humilhou ainda mais as negras e os negros e gerou uma civilizaçãoestranha, de miseráveis, com poucas oportunidades, que influencia umanação e não consegue se desenvolver por causa dessa contínua falta deassistência. Eles estão mais sujeitos a doenças, aos problemas sociais e a violência doque o povo do Sul do Brasil. Não resistem. Essas contínuas gerações de mamelucos e cafuzos, resultado de umamiscigenação desenfreada - e aqui um parêntese, não existe preconceitonesta afirmação, pois os brancos não podem nem viver perto de índios paranão contaminá-los com nossas doenças esquisitas, quanto mais ter relaçõesconsangüíneas, sofre diariamente. Passa fome continuamente. Eles têm seus direitos sociais e civis cassados pelas minorias brancas,pelos políticos e até mesmo por seus conterrâneos. O trabalho escravopersiste por todos os cantos. O que se ouve de Salvador a São Luís são avisos constantes aos turistas,ou a quem tem a pele branca: cuidado, não saia com a máquina fotográfica.Não saia com esse tênis, não leve dinheiro para a rua. Cuidado na praia,os ladrões estão em todos os cantos. A liberdade não existe entre eles. Existe sim o medo crônico, uns dosoutros, às vezes de pessoas maltrapilhas e famintas, que podem serbandidos ou apenas mendigos. O povo nordestino vive num mundo à parte. As cidades são imundas, o crimecompensa e a exploração por meia dúzia de coronéis em cima do retirante,do miserável é uma constante infinita. Eles não têm noção de limpeza, deeducação, de respeito entre eles mesmos. São muito hospitaleiros. O povo de uma maneira geral, trata bem o sulista. Entretanto, acham que ofuturo da humanidade está nos Bolsas-Esmolas do Lula, que, certamente seráo novo Padim Padre Cícero da região. Um santo. Nesse mundo diferente, longe da globalização, até os ricos e mais letradosacreditam no Lula, no governo petista. Pior, sabe lá o que se passa nacabeça desse povo mal alimentado, para adorar seus políticos, comoInocêncio de Oliveira, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney e clã, entreoutros. Para pensar no domingão Cenas do cotidiano nordestino Naa sexta-feira, 2 de fevereiro, por volta das três hora da tarde. nocalçadão da praia Porto da Barra, em Salvador, os camelôs apresentavamseus produtos. Os turistas tiravam fotos da bela paisagem, e eu, andava àprocura de um lugar para beber água. De repente, um sujeito desceu da sua moto, deixou a bela moça na garupa,sacou o revólver, gritou para um tipo metido a capoeirista: não mexa maiscom minha mulher. E bum bum, dois tiros, um na cabeça e outro no coração. O povo se amontoou por uns instantes e depois foi todo mundo embora, nemderam muita atenção, para dizer a verdade. Não era com eles. O assassino pegou a moto, a mulher o abraçou em tom de aprovação e saíramvoando. No Nordeste é assim, cabra mexe com a mulher alheia, morre comoanimal, ali mesmo, horário comercial, na rua. Em Fortaleza, no domingo dia 4 de fevereiro, uma senhora com sua filhinhasaía da locadora de vídeo. Ao parar em frente ao seu carro importadoalemão de primeira linha, a madame jogou na rua um pedaço de papel. Euapanhei o lixo e entreguei a ela. E disse: a senhora deixou cair. A surpresa veio quando ela disse: não, é lixo mesmo, eu joguei. Semqualquer constrangimento. Depois de um instante e com educação ela falou: desculpe, você tem razão,eu não deveria jogar na rua. Mas é que está tão suja, um a mais, outro amenos, não muda nada. É a imagem do Nordeste.

O Mundo do Alex

O jornalista Alex Gutemberg, do jornal o Estado do Paraná publicou, em dois de fevereiro, um artigo sobre o Nordeste intitulado Um Mundo que Parou no Tempo. Neste texto, Alex descreveu o Nordeste como uma terra quase medieval, repleta de violência e miséria e botou a culpa disso tudo nos estupradores europeus, que bagunçaram a pureza étnica de lá e criaram um povo sem raízes e desestruturado.

Para provar seus argumentos, Alex dá o seu depoimento pessoal sobre duas cenas do “cotidiano” nordestino. Na primeira, um motoqueiro acompanhado de sua namorada dispara dois tiros contra um transeunte, atraindo pouca ou nenhuma atenção dos passantes. E, na segunda, uma senhora abastada não se incomoda de jogar lixo na rua, “já que está suja mesmo”.
O artigo de Alex é perigoso porque mistura fatos concretos com uma conclusão muito particular e estreita do jornalista, correndo o risco de ser convincente. Sinto-me, portanto, na obrigação de desmenti-lo.

Os índios brasileiros foram explorados em todos os lugares do país, inclusive no Sul, onde foram exterminados mais eficientemente e onde a miscigenação é menor. Menor, porém existente.

Violência e miséria não são exclusividade do Nordeste, mas um mal que assola todo o país, especialmente nos grandes centros urbanos. Políticos e governantes corruptos e populistas, interessados em manter a indústria da fome e da desinformação têm muito mais culpa sobre a situação do país que qualquer estuprador estrangeiro, com a vantagem de que os governantes ainda podem ser identificados e punidos, se não pela justiça, quem sabe pelo voto. E se é verdade que a exploração e a circunstância acentuaram as diferenças sociais do Nordeste, também é verdade que passo minhas férias muito mais tranqüilo no Nordeste que no Rio de Janeiro.

E o fato é que as cenas terríveis que Alex descreve podem acontecer em qualquer cidade do Brasil, inclusive no sul do país. Acrescento ainda o meu depoimento pessoal: nunca vi ninguém ser assassinado nas ruas do Nordeste e já vi várias pessoas jogando lixo nas ruas de lá – a maioria delas turistas. Gente de fora que vai para lá curtir o sol e as mulheres, mas trata a terra com o mesmo desprezo que os estupradores europeus.

Alex, algumas das coisas terríveis que você descreve em sua matéria não estão acontecendo apenas no Nordeste – estão acontecendo no Brasil. E me entristece muito ver um jornalista brasileiro falando dos problemas brasileiros como se não fosse com ele. Separatismo é isso.

segunda-feira, 5 de março de 2007

O Ronin e o mercador

O mercador seguia pela estrada de terra tranquilamente em sua carroça quando se deparou com uma tropa liderada pelo novo bugiô (funcionário do governo – neste caso, um fiscal de estradas) de Nagasaki.

— Sua carroça e seus bens estão confiscados – disse o bugiô, depois de apresentar-se formalmente.

— Mas... Por quê? – Perguntou o mercador, que tinha todos seus documentos em ordem.

— Por contrabando.

— Mas, senhor, levo comigo apenas tecidos. Estou sendo acusado sem provas?

— Provas podem ser arrumadas posteriormente. O importante é que eu mostre serviço, pois sou novo e desejo impressionar meus superiores. Uma carroça grande como a sua e tão cheia de mercadorias é perfeita para isso.

O mercador foi derrubado de sua carroça e amarrado. Nesse meio tempo, um ronin (samurai sem mestre) que a tudo ouvia escondido nas sombras do bosque que ladeava a pequena estrada, apareceu e apresentou-se:

— Sou Ito Ogami, assassino.

E, com golpes precisos e fortes de sua katana, matou o bugiô e seus soldados. Com um último golpe, libertou o mercador das cordas.

— Obrigado – agradeceu o mercador, inclinando-se para frente.

— Sua gratidão não é necessária. Estou aqui a mando de outro mercador, que sofreu a mesma injustiça que você. Não fiz o que fiz para ajudá-lo, mas para cumprir meu contrato.

O mercador olhou para os pés feridos do ronin, que deveria estar rondando a estrada há dias, e perguntou, em tom humilde:

— Para onde vai?

— Para Edo (Tókio).

— Então peço que suba em minha carroça que o levarei até lá. É justamente para onde estou indo.

— Já disse que sua gratidão não é bem-vinda – respondeu o ronin.

— Mas não se trata de gratidão! Absolutamente! Falo de algo maior chamado destino. Não fosse o senhor aparecer para cumprir sua tarefa neste exato momento, eu perderia tudo o que eu tinha. Não fosse minha carroça para ocultar a sua chegada, o senhor talvez não tivesse tido a oportunidade de aproximar-se tanto de seu alvo. O destino nos favoreceu a ambos. E quis o destino que o senhor salvasse a vida não apenas de um mercador, mas a de um mercador, dono de uma carroça, cujo itinerário lhe convém.

O ronin ficou em silêncio. Um meio sorrido ameaçando formar-se em seus lábios. O mercador continuou:

— O destino está lhe convidando a chegar mais cedo e descansado em Edo e o que o destino nos reserva, senhor samurai, devemos aceitar.

O samurai então pediu licença, limpou seus pés e subiu na carroça.


 

Essa é minha homenagem a Kazuo Koike, criador de Ito Ogami, O Lobo Solitário.

Os Infiltrados (The Departed)

Já que comecei a falar dos filmes do Oscar, vou até o fim. Tá bom, sem radicalismos, mas vou falar pelo menos de mais um: Os Infiltrados.

A começar pela tradução do título que, em português, perdeu o tom irônico para dar lugar a uma versão mais literal do roteiro. Não chega a ser uma reclamação, já que uma tradução direta do título original teria apelo comercial duvidoso. “Os que se Foram”? Melhor “Os Infiltrados”, mas fica a observação. Até porque já escrevi e estou com preguiça de deletar.

Não é o melhor filme de Scorcese, mas é realmente possível que seja o melhor filme do ano no quesito entretenimento. Boas atuações, boa trilha sonora, fantástica edição, bom-humor, violência, diálogos interessantes, enfim, é um filme até meio despretensioso e, talvez por isso mesmo, divertido.

Em Os Bons Companheiros, Scorcese contou uma história de máfia moderna que, apesar do humor negro, tinha o pé na realidade. Em Gangues de Nova York, pintou uma fantasia com tons dramáticos. Em Os Inflitrados o diretor realiza uma sátira a ele mesmo. A história claramente descamba para o surreal, a la Pulp Fiction, criando personagens inesquecíveis, como os de Alec Baldwin, Mark Whalberg e do próprio Jack Nicholson (interpretando ele mesmo mais uma vez – e sempre ótimo).

O jeito certo de assistir a Os Inflitrados é sentar na cadeira do cinema achando que o filme não vai ser lá grande coisa – aí você vai adorar!

domingo, 4 de março de 2007

Babel

Acabei de assistir ao filme Babel da maneira mais apropriada possível. Em um DVD copiado no Paraguay (ou em Taiwan, tanto faz), com legendas que misturavam português de Portugal, espanhol e muita criatividade.

Como o filme trata justamente da diversidade de culturas, de línguas e da insanidade resultante da globalização, nada mais adequado que dificultar ao máximo o entendimento da história. Veja bem que, neste caso, a cópia pirata do filme, contribui para a experiência multicultural que o filme propõe e é, portanto, plenamente justificada.

A experiência teria sido mais bem sucedida se o filme fosse um pouquinho melhor. Lento e previsível, Babel deve seu sucesso às sessões de auto-análise que a sociedade americana tem promovido através do seu cinema (normalmente financiando cineastas de outros países, para garantir o distanciamento e eticétera). Não se trata de uma porcaria, longe disso. Até me arrisco a recomendá-lo, especialmente se você estiver no clima para um pouco de entretenimento deprê, mas só se você já tiver assistido aos outros indicados do Oscar. Todos os outros – incluindo Happy Feet e o documentário do Al Gore.