terça-feira, 25 de abril de 2006

O equipamento

O corpo humano é uma das piores máquinas que existem. Complexa, frágil e que exige manutenção constante. Quando Deus apresentou o primeiro protótipo, fez-se um silêncio constrangedor. O primeiro a falar foi o Anjo do Marketing.
— A idéia é boa, Senhor. Mas... Está muito perfeito.
— Hmm... Bom, é claro que está perfeito. É como todo o resto do universo. É uma conseqüência natural do fato de Eu mesmo ser perfeito.
— Mas do jeito que está fica muito auto-suficiente. Logo, logo, vai cortar relações com o Paraíso.
— E o que vamos dizer para os acionistas? – quis saber o Anjo das Finanças.
— E vocês têm alguma sugestão?
Foi o que bastou. Em primeiro lugar, não poderia durar para sempre. Era importante que novos modelos entrassem no mercado de tempos em tempos. Depois, uma manutenção alta, para assegurar que dependeriam psicologicamente do Paraíso, o que aumentaria em muito o recall do Céu. Eventualmente, para evitar processos, seriam lançados modelos especiais, para provar que o ser humano tem potencial, sim, para a perfeição e que qualquer problema era provavelmente culpa do usuário.
— E diminui o tamanho da Terra e a quantidade de recursos disponíveis – sugeriu o Anjo da Guerra.
— E depois vamos conversar sobre essa história do Universo todo também ser perfeito. Não vai combinar – disse o Anjo Consultor de Moda.
Enfim, olha aí o que deu. Menstruação, barba, cabelo no sovaco, doenças, intolerância e a coisa fugiu ao controle. No Paraíso, a área que mais cresceu foi o call center e os executivos não têm mais como resolver o problema.
— Vamos fazer logo o homem imortal!
— Então tem que fazer parar de nascer gente, o que vai ser complicado, pois ninguém quer parar de fazer sexo. E não diga “homem”, diga ser humano ou o lobby das feministas nos massacra.
— Quem foi o gênio que teve a idéia de fazer o sexo ser bom?
— Foi o Anjo das Vendas, a idéia era construir uma base de clientes de forma mais rápida. Parecia boa na época.
O tiro saiu pela culatra. O homem virou um eterno insatisfeito e a sua relação com o Paraíso é, no mínimo, conflituosa. Deus chegou a mandar o próprio filho para ver o que podia ser melhorado. Ao fim de sua estada entre nós, Jesus comentou:
— Fiz o que pude, mas os caras são osso duro de roer – não dá para fazer milagre...
— Pelo menos entregou o manual de instrução?
— O pessoal achou a versão que você deu pro Moisés muito simples e que escrever na pedra era pouco prático. Fizeram um novo modelo com ilustrações e em policromia.
— Entregou ou não?
— A gráfica não terminou a tempo. Tive que ir falando e eles foram anotando...
— Ai, ai, ai...
Somos uma máquina estranha. Até quem cuida bem de si mesmo não tem garantias de que vai durar mais, ou que vai funcionar melhor. Freqüentemente, são os nossos defeitos que determinam nossas virtudes. E a coisa toda ficou tão complexa que já não dá mais para saber o que é defeito de fábrica e o que é mau uso do equipamento. Agora só começando tudo de novo.

Um comentário:

  1. Nesse dia voce estava inspirado! Adorei! Mas meu lado filosofico nao me deixa deixar de protestar à analogia com a maquina. Afinal de contas, pode-se argumentar que nao é o corpo que reclama o "Paraiso", mas, por falta de termo mais apropriado, a alma. Uma das aporias mais complicadas de todos os tempos... O problema do "ghost in the machine" esta longe de ser resolvido, e merece reflexao.

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