quinta-feira, 23 de março de 2006

Dilema Moral

Ontem me vi diante de um dilema moral que só parece ridículo para aqueles que não são familiarizados com a teoria do caos. Preste atenção.
Caiu sob minha responsabilidade a tutela de um prato de papelão que continha, entre outras coisas, três quindins e quatro brigadeiros. O restante do conteúdo do prato não é importante para nossa reflexão, mas, para satisfação dos completistas, tratava-se de um generoso pedaço de torta de frango com palmito.
A primeira questão mal explicada é a presença destes doces em meu poder, uma vez que não os como. Destino, talvez? Prossigamos com o relato.
Repousei o prato suavemente sobre o banco do passageiro, com o intuito de fazer chegar os doces à minha residência, onde eles seriam divididos entre minha filha e minha esposa. O observador atento já notou que os doces estavam em número ímpar. Como seria realizada essa divisão? Qual das duas seria mais beneficiada? Talvez o que tenha acontecido a seguir foi uma forma do universo corrigir uma injustiça ainda a ser cometida.
Eis que, súbito, o condutor do carro à minha frente pressiona o freio com violência, obrigando-me a fazer o mesmo. Ora, a lei da inércia ordenou ao prato – e aos doces sobre ele - que continuasse sua movimentação. O atrito da superfície áspera do banco sintético do passageiro, contudo, impediu que o prato progredisse muito, refreando sua aceleração.
Porém, oh, porém, o atrito da superfície do prato de papelão foi pífio, e os doces foram arremessados no espaço. Note que uso o termo “arremessados” como figura de linguagem, pois já foi demonstrado que os doces apenas seguiam as ordens da natureza.
Foi neste momento que me encontrei diante do dilema moral supracitado.
Minha mão direita, embora larga, tem um limite de tamanho. Isso significava que, mesmo com meus excepcionais reflexos, não seria capaz de salvar todos os doces da espatifação. Como eles estavam distribuídos simetricamente sobre o prato, ou tão simetricamente quanto possível para elementos em quantidade ímpar, sucedeu-se o impensável: em uma fração de segundos, vi-me obrigado a decidir qual a categoria de doces que deveria salvar, os quindins ou os brigadeiros?
Tanto faz, diria o glutão, mas sou um homem sensível, que entende que são nossas escolhas a matéria-prima do universo. E então?
Salvei os quindins. Decisão tomada no calor do momento. Se tivesse tido tempo para refletir, teria salvo os brigadeiros, pois eles eram quatro e seria mais fácil de dividi-los entre minha filha e minha esposa. Mas ali, no ato-reflexo, atuei como o anjo dos quindins. E você, o que teria feito? E, mais, o que teria significado sua decisão?
Um brigadeiro salvou-se sozinho, por sorte ou habilidade, equilibrando-se na beirada do prato por intermináveis milésimos de tempo, antes de retornar a repousar no fundo do prato. Alguns granulados perderam-se no assoalho, mas apenas um especialista poderia perceber a diferença entre aquele brigadeiro e qualquer outro.
Na hora da divisão, ter quatro doces facilitou o processo. Contudo, durante todo o restante do trajeto até minha casa, tive que suportar a vigília recriminadora daquele brigadeiro solitário entre os quindins. E, posso jurar, ouvi mais de uma vez um sussurro, com ira contida:
— Racista!

Um comentário:

  1. Cara!

    Muito bom esse post!

    Mas com certeza, não deixa de ser uma demonstração clara e descarada de racismo! Hahahahahaha!!!

    Vc teria a mesma atitude se os brigadeiros fossem brancos, vulgo, "beijinhos"?

    Grande abraço

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