quinta-feira, 2 de abril de 2009

Historinha 2

Boas justificativas nem sempre precedem boas atitudes. Não se preocupe que você não vai precisar tirar conclusões sobre essa frase assim num repente. Vou dar um exemplo e, ao final, ainda pretendo concluir meu raciocínio. Aproveite que não é todo dia que me esforço para ser coerente.

Em 1950, os Estados Unidos e a União Soviética ensaiavam os primeiros passos da guerra fria que se estenderia por anos a fio. Os dois países faziam parte do Conselho de Segurança da ONU, mas, como a relação já andava azeda e os objetivos dos EUA já divergiam dos objetivos soviéticos, a União Soviética parou de freqüentar as reuniões do Conselho de Segurança.

Ora, todas as decisões do Conselho precisavam ser unânimes e o boicote soviético implicou o congelamento das pautas. Coube aos diplomatas americanos, devidamente assessorados por bons advogados, a missão de reinterpretar o Estatuto da ONU para fazer as coisas andarem novamente. Eles descobriram que, por conta de uma redação vaga, as pautas poderiam, na verdade, ser aprovadas por consenso. Ou seja, a unanimidade dos presentes. Assim, eles não precisariam da União Soviética. Bastava, para isso, uma releitura do estatuto.

O argumento americano foi sólido: não temos condições de esperar a União Soviética. O Conselho de Segurança é um órgão importante das Nações Unidas e não pode se dar ao luxo de simplesmente se congelar no tempo e no espaço. A ação rápida e incisiva sempre foi característica marcante do Conselho e isso é o que diferencia a ONU daquela outra tentativa fracassada de instituição internacional chamada Liga das Nações. E tem mais: não estamos fazendo nada de errado, pois não estamos reescrevendo o estatuto, estamos apenas reinterpretando o que já está lá.

Nobre. Correto. Pró-ativo. Criativo. Praticamente inevitável, dadas as circunstâncias. A Assembléia Geral da ONU deu o sinal verde.

E os Estados Unidos aproveitou-se da situação pra, sem a interferência soviética, aprovar a invasão da Coréia por tropas militares americanas*.

Foi a primeira de muitas situações na qual o governo americano encheu-se de boas justificativas para fazer algo injustificável. Ou, melhor, algo que só se justifica do ponto de vista dos interesses políticos e econômicos norte-americanos. E toda a turma que assina embaixo da justificativa normalmente tem o hábito de continuar assinando embaixo das cagadas subsequentes - agora sem o trema (o subsequente e não as cagadas)!

O que acontece na política internacional é reflexo da natureza humana. Os governantes mentem e são dissimulados porque o ser humano mente e é dissimulado. Os governantes são brilhantes porque o ser humano tem a capacidade de ser brilhante. E os indivíduos também têm interesses políticos e econômicos. Por isso, fica o alerta: cuidado com as pessoas cujas justificativas (ou intenções) são sempre melhores que suas atitudes.


* Essa história tem mais detalhes, que omiti propositadamente, senão o Ninguém Perguntou acaba tendo algum tipo de valor educativo. Se quiser cultura, vá ler um livro.

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