quinta-feira, 11 de agosto de 2005

Artefato

Múcio Bortolini (o nome verdadeiro dele não é esse) tinha dormido mal na noite anterior. Acessos de tosse, dor de cabeça, mal estar geral.
— Gripe! – falou sua esposa, em tom acusador.
Mas Múcio sabia que era mais que isso. Achou também que estivesse com febre, embora não conseguisse provar. Toda vez que usava o termômetro o danado ficava no trinta e sete e meio. Quando, às três da manhã, teve certeza da febre (calafrios e suores), estava com sono demais e derrubado demais para pegar o termômetro, que parecia rir dele, do alto da prateleira.
Mas o pior foi o catarro. Uma coisa é tirar aquela bolinha sequinha do nariz e colar na cadeira do cinema (uma diversão secreta de Múcio), outra completamente diferente era aquele muco verde, espesso e abundante, digno de qualquer filme de ficção científica.
Quando a esposa do Múcio entrou no banheiro de repente e viu aquela gosma disforme sobre a pia, escorrendo lentamente em direção ao ralo, desmaiou. Múcio percebeu que não poderia voltar para casa sem uma solução e, resoluto, dirigiu-se ao Pronto-Socorro.
Encontrou um desses médicos modernos, bonachão, cheio de intimidades:
— Boa tarde, seu Múcio – falou, olhando o prontuário. – Diga-me o que o traz aqui. Fique à vontade, vá sentando, vá sentando. Dia lindo, não?
Múcio relatou seus males da melhor forma que pôde. O médico parecia ainda mais animado:
— Que beleza! Não deve ser nada! Uma sinusite alérgica, você vai ver. Uma bobagem. Uma coisa à toa. Mas vamos tirar um raio-x do pulmão e da face, só para ter certeza.
Lá foi Múcio, com sua tosse e seu catarro, tirar as necessárias fotografias do seu interior. Com os raios-x na mão, entrou novamente no consultório do médico.
— Não falei? – Berrou o médico, eufórico. — Não tem nada. Pulmões limpos, sadios, sem... Sem...
O médico entrou subitamente em um silêncio profundo e começou a olhar para o exame de forma atenta, experimentando vários ângulos, como se quisesse entender o que estava vendo. Múcio, impossibilitado de engolir em seco, por causa do catarro, engoliu uma melequinha, preocupado.
— O que houve, doutor? Tem alguma coisa errada com o exame?
— Não exatamente... Tem uma coisa aqui, meio ovalada, meio quadrada... É um artefato, sem dúvida.
— Um o quê?
— Um artefato.
— Um artefato... No meu pulmão?
— Isso mesmo.
— Mas, como assim, um artefato? É um rádio-relógio? Um anel de brilhantes? Um artefato? Meu Deus, de hoje não passo.
— Calma, calma, vamos pedir um laudo e ver o que é primeiro. Pode não ser nada.
— Como assim, nada? Afinal, tem ou não tem alguma coisa aí?
O médico parecia não saber o que dizer, mas, finalmente, confirmou:
— Tem.
— Um artefato.
— Pois é.
Múcio deu a notícia para a esposa com todo cuidado, mas não precisava ter se preocupado tanto. Ela ficou encantada.
— Puxa, Múcio, um artefato! Que bacana. Nunca conheci ninguém que tivesse um artefato no pulmão. Posso ver?
Múcio mostrou os raios-x.
— Olha, parece um óculos – disse ela, apontando para uma parte da foto que não tinha nada a ver com o tal artefato.
Durante uma semana, Múcio ignorou o artefato e tratou sua miséria como se fosse uma sinusite alérgica, a conselho do médico. Não melhorava, nem piorava. Às vezes ficava pra baixo, às vezes bem-disposto. O laudo já havia ficado pronto, mas ele enrolou pra pegar. À noite, sua esposa o abraçava carinhosamente, orgulhosa do marido ser tão especial e possuidor de uma doença tão rara. Ela teria uma reunião com as amigas do clube no sábado e mal podia esperar para contar a novidade. A Regininha, cujo marido tinha gota, ia ficar morrendo de inveja. Queria ver alguém superar isso. Um artefato! E no Pulmão!
Mas, na sexta-feira, Múcio ligou para ela do celular. Tinha ido pegar o laudo e queria contar a novidade para a mulher:

— Querida! Você não vai acreditar! Meus seios costo-frênicos estão livres!
— Seus o quê?
— Meus seios! Eles estão livres! Quer dizer, o seio da face está hipoplásico. Mas os seios costo-frênicos, os seios maxilares e os seios esfenoidais estão livres.
— Meu bebê... Você é homem, não tem seios. Tem, no máximo, peitos. E só dois.
— Você não está entendendo. O artefato não era nada. Quer dizer, era só uma pneumonia, mas nada grave. Meus seios e o meu mediastino vão ficar bem.
A esposa de Múcio nem teve ânimo de perguntar o que era mediastino. Mal podia acreditar que o artefato a havia deixado assim, sem mais nem menos, um dia antes da reunião do clube. Mas procurou animar-se. Se o marido aparecesse em casa à noite com dez ou doze seios pelo corpo, ela ainda seria a sensação da noite.

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